carta de 06 de junho

Meu pequeno cineasta,

te sinto e nem ao menos te vi. Sem nem ao menos tocar-me acabaste por deixar em mim, em corpo, buracos, ausências, saudades. Lembro quando cantavas para mim aquela canção do Chico Buarque - entre tantas outras. Dizias em silêncio e fúria: "meu amado vai usar/ palavras como se elas fossem mãos/ tantos rodeios/ para enfim enfim me roubar/ coisas que dele já são". Cantavas dedilhando meu pescoço, "sussurrando em falsete em falsete coisas que nem sei contar" (que o seja, já que estamos musicais). Dizias de mim, com as palavras de Lábia, como alguém ardiloso, secreto, perigoso. Ao menos o penso que era assim. E penso porque também te guardo assim. 

Ah!, meu carinho. Quem diria que chegaríamos a tanto? Queria saber somar, mas só sei me dividir. Antes pensava nisso como vantagem, mas há tantos pedaços de mim espalhados entre aqui, eu e ti que já nem reconheço minhas próprias geografias. Mais uma vez, falando com lábia, "há sempre um tempo, um batimento". O nosso parece ser esse descompasso, a música atravessando a cena, transbordando.

Te vejo em excessos, em quadros, em igrejas pela cidade. Entre aqui e lá, muito laços, atados. Mais lá ainda que dentro, em mim. Sua presença faz duvidar toda minha geometria e segurança. Tua presença provoca até mesmo meu princípio fundamental de não agressão. Um sem número de vezes me vi avaliando se minhas palavras eram uma expressão genuína de afeto, ou uma lâmina. Dizes não ter expectativa sobre nós, e eu em segredo tento confirmar em mim também algo parecido. Conseguiremos? 

Quando a câmera de Bergman se aproxima em close aos rostos dos atores e todo o mundo que os rodeia desaparece: eis a imagem da mais profunda solidão. Lembro da conversa de Ana. A câmera segura e certa naquele todo-mar de olhos azuis rodeado por sardas vermelhas. Os cabelos louros, a boca farta. Me atordoa ouvi-la dizer, como promessa: "E tivemos o maior carinho um pelo outro para sempre". Me atordoa, porque assim como ela, as palavras me parecem banais, não comunicam a experiência, "ainda que seja através delas que eu me defenda" (já diria Bethânia). 

Sou um homem dividido, fractal. Me vejo em muitos, refletido, desmontado. Uma parte se aproximou de ti nesse semana. Uma parte. Não sei ser todo, me dói. E meu desafio é ser pedaço em um mundo que exige integridade, completude. Isso não me serve, me esvazia, me força uma cola, um cimento que corrói. Me mata assim como teus olhos através das lentes, tua mão suave, a barba breve, a voz que "viola meus ouvidos". Mas seu teu assassinato cotidiano, os pedaços de mim que pousam sobre ti se esvaem, como um sopro. 

Sopra sobre mim tuas palavras, Quero-as, ainda que banais. Tenho esperanças de que algo de ti chegue a mim, ainda que por equívoco. Dizes-me de ti. 

Contigo,

T.

P.s.: envio-te junto meu presente pelo teu dias de anos e um pequeno poema do Vinicius. Fica bem. Fica perto.

Carta de 12 de março

Meu pequeno Leprechaun

Há muito não escrevo cartas. Aliás, há muito tempo já não escrevo qualquer coisa que não burocracias, obrigações e deveres. Inadvertidamente fui presenteado esse ano com um pequeno bloco de anotações trabalhado a papel, couro e mão. Na capa se lê: escreve aqui todo dia. Até hoje, tendo se passado quase três meses desde que me foi dado continua intacto. Intacto como minha saudade. Estive esperando por horas uma palavra tua, uma mensagem, um sinal. Vou dormir e nada. 

Conforme te havia dito, confundem-se em mim fórmulas e sussurros. Sei dos constrangimentos e problemas que nosso afeto provoca, mas também entendo que essa é a própria razão dele. Quiçá não existisse nada disso se não houvesse toda essa bruma de confusão e silêncios interditos que se fez entre nós. Escrevo pra dizer-te que tua palavra a mim me importa. Sinto falta dela assim como sinto falta da presença que nunca tive: a tua. Nossa memória é como um cobertor cheio de buracos: protege, abriga, mas desde longe se percebe as lacunas. Há espaços convexos, que se agrupam e nos juntam, mas também há esses constrangedores buracos do momento recente, daquilo que não foi construído. É um duelo duplo: matador. 
Parafraseando Oswald de Andrade, que não sei se gostas – mais um abismo entre nós – escrevo-te como quem observa um pássaro morto. Esse verso sempre me incomodou. Foi para mim uma beleza por ser compreendida. Hoje passados quase dez anos desde que o li pela primeira vez ainda não o compreendo. Também não te compreendo. Apenas gosto dessa companhia ranzinza e sinistra; apenas gosto de ti. Desconheço as razões.

Tenhas uma boa noite sobre o chão e sob as estrelas

Contigo,

T.

Carta de 21 de Fevereiro

João Pessoa, 21 de Abril.


Amigo, 

acho que perdi o dia. Sim, eu o perdi. Perdi em contar miúdos, trocar pequeninas peças; e agora eu o procuro. Se perdi o dia, ora bolas, devo encontrar a noite ao menos, certo? Mas não me sinto em luzes suficientes para ouvir qualquer piado que seja. É como se na minha noite a lua-z se fizesse facultado. Ainda a pouco vi cartas e pensei ser corda. Tem-se perdido muitas histórias, muitas lembranças também tem ficado caladas, talvez seja isso de perder-se o dia. Mas o que me aflinge é não achar para o dia qualquer cor que seja enfeite. Só há aquilo que um lápis de cor daqueles de caixa pode mostrar sem misturar-se, e cada vez mistura-se menos. Males? Sim, acredito.  Males. E por falar neles, vou com Bandeira fazer minhas malas. Como só me tenho dado a achar cordas, vou pintar-lhas de vermelho e fazer-me uma corda bamba entre aqui e acolá.

Saber-se-a se ao menos assim me escreves. 


Carta de 11.12

S,

parece que tinha me perdido. Havia em mim qualquer coisa como falta de geografia entre aqui e lá; estou na fronteira? Não sei, mas sei que te achei. Como te achar no embaraço, na falta de calor, frescor ou cheiro? Como te encontrei perdido que estava por qualquer coisa que me soasse como sombra neste chão madrepérola, qualquer coisa que me fosse com concreto, como meu, como nosso... como? Como não sei, mas é. Acaso te encontras multipartido? Fragmentado? Certamente não sabes, ou se o sabes não vais me dizer pois é sempre esse jogo de fazer com que eu te descubra para depois te fazeres desaparecer de novo o teu símbolo. É meu caro, nos achamos perdidos, ou nos queremos ver perdidos assim podemos nos dar ao dissabor de tocar um a mão do outro, de nos acharmos perdidos juntos. Seria uma boa segurança. Seria a nossa segurança andar sem bússolas que fossem. Seria o nosso começo. Mas sinto tua falta, falta de te ver presente sempre que estás perto. Desejo de não te ver cruzando qualquer fronteira sem que eu saiba se estou eu ou não na fronteira ou no concreto. Preciso saber se estou, se estás comigo. Seria uma boa segurança. Seria nossa segurança.

Como sempre: teu.

Th. 

Carta a Dio

Amado Senhor D.,

Sei que as noites contigo têm sido indescritivelmente extasiantes, mas as outras horas do dia - em que me deixas perdida em Tua floresta na montanha - estão para me enlouquecer de um jeito que me desestabiliza inteira, e com o qual nem sempre eu sei lidar.

Considera meu pesadelo desta manhã de sono, e propicia aquele momento do qual preciso para compensar a situação em que me encontro, nesta rede na qual me joguei voluntariamente à espera de uma coisa que não veio e que acabou por me enrolar como a uma teia.

Lembra que Atena carregou Teu coração até Zeus e me ajuda a restaurar o meu, o qual não só palpita (como o "pallein" de Pallas) como também vem sangrando diante de Tua presença.

Reconhece entre Tuas mênades o que está causando essa tensão ausente de furor sagrado e com nódoas de transgressão negligente, e purifica-nos com Tua dança, percussão e transe.

Revela-nos pela 'mantiké' a divina 'manía' que promove a 'maieutiké', fazendo-nos seres novos e plenos de Ti.

E, especialmente, esposo das bacantes, mostra-me o sentido por trás dessa vertigem que me toma a mente e a alma, que constantemente vêm se debatendo contra os meus desejos.

Que nós dois possamos prolongar o enlevar da noite através dos dias e compartilhá-lo com aquelas criaturas que mais Te são próximas. Traga-nas para junto de mim, tanto no trazer quanto no tragar, e consome-nos em fumaça sagrada para diluirmo-nos em Ti.

Entregue estou, toma-me como se a uma ânfora, e sorve para fora o veneno da confusão profana, para tornar-me instrumento sacro em Teu séquito.

Senhor de olhos noturnos, anseio por navegar em Teu mar cor de vinho, escoltada por Teus golfinhos-piratas e enredada de hera sagrada.

Conduze-me com Teu tirso agora, e dá-me Tua bênção...

A.
~ 5 de dezembro de 2010 ~

Carta de 14/08

I.,

Hoje sonhei com você.

É engraçado como parece um encontro consciente, já que eu sei que você já se foi e a gente fala sobre isso. É como um momento das conversas que não tivemos e não poderíamos mais ter.

Contei que não sei o que vou dizer quando for encontrar teus pais. Comentei como teria dado para te trazer de volta através da magia se a morte ainda fosse recente, mas já passou do tempo em que isso teria sido possível. Ouvi de ti que me amavas e perguntei se teremos que esperar a próxima vida. E foi como se me dissesses que ainda podemos ter isso aqui, esses momentos de encontro em outro plano, onírico para mim e, sabe-se lá como o chamas daí, pra ti.

Sempre é bom sentir teus lábios novamente, e teu nariz macio. Às vezes eu quero acelerar o tempo para te encontrar logo de novo, e às vezes eu prefiro ficar para fazer tudo o que não pudeste.

Sabe, semana passada 'psicografei' uma carta dele, num momento em que ele sabia que estava pensando em ti. E ele me disse que não foi por acaso que fui deixada sozinha. Na hora eu entendi que o que tenho que fazer não poderia ser de outro jeito, mas talvez nem seja só isso, afinal as coisas não giram em torno da missão para a qual me mandaram. Acho que ainda não estou pronta para saber, por isso ele não pôde alongar demais o discurso.

Só espero que esses encontros tornem a acontecer. Antes eu acordava triste por ver que voltava ao mundo no qual não mais estás, mas hoje em dia eu acordo feliz de ter te revisto. Então, fique à vontade para aparecer quando puder.

E não esqueça que - como a Xena disse para a Gabrielle na despedida do começo da trilogia nórdica - "my love for you is endless".

A.

16 de maio de 2010.

S.B.

Pela primeira vez nesses anos, me ponho a lhe escrever... Sei que do lugar que está lerá de alguma forma...
Sei também que do lugar onde está sabe que não te esqueci nem por um único momento. Sabe de minhas questões internas, sabe de minhas alegrias e tudo o mais que me ocorre...

Escrevo porque as imagens ainda ficam... Gostaria de saber se são com você, mas você não pode me responder... Ou pode?
Gostaria também que nossos planos dessem certo, gostaria de nós reunidas,  escrevendo juntas... Foi tão rápido não é?
Sei que onde está é maravilhoso - ou ao menos assim espero... Mas fico pensando nisso tudo...

Um assalto é a ideia que mais se aproxima. Sinto que você foi roubada, em 'n' aspectos... Talvez sua alma seja mais tranquila do que a minha...
Em algum momento daqueles poucos meses criamos esse estranho vínculo... Em algum momento Eles te colocaram em minha vida e contaram tudo o que aconteceria...

Ainda penso sobre tudo isso e não entendo completamente. Eu precisava desse choque, eu sei... Mas mesmo assim, não acordei completamente.
Ainda me mantenho num estranho bloqueio... Ainda me mantenho no medo e na descrença, aqueles a minha volta talvez acreditem mais do que eu mesma.

Acho que você já sabe de tudo isso... Mas foi bom dizer.
Gostaria muito que respondesse...

Com carinho,
Soph.

P.S. Aproveito para agradecer aquela pequena certeza que você me deu e pela água batendo no meu rosto dizendo "é verdade". Beijos, baiana.