Meu pequeno cineasta,
te sinto e nem ao menos te vi. Sem nem ao menos tocar-me acabaste por deixar em mim, em corpo, buracos, ausências, saudades. Lembro quando cantavas para mim aquela canção do Chico Buarque - entre tantas outras. Dizias em silêncio e fúria: "meu amado vai usar/ palavras como se elas fossem mãos/ tantos rodeios/ para enfim enfim me roubar/ coisas que dele já são". Cantavas dedilhando meu pescoço, "sussurrando em falsete em falsete coisas que nem sei contar" (que o seja, já que estamos musicais). Dizias de mim, com as palavras de Lábia, como alguém ardiloso, secreto, perigoso. Ao menos o penso que era assim. E penso porque também te guardo assim.
Ah!, meu carinho. Quem diria que chegaríamos a tanto? Queria saber somar, mas só sei me dividir. Antes pensava nisso como vantagem, mas há tantos pedaços de mim espalhados entre aqui, eu e ti que já nem reconheço minhas próprias geografias. Mais uma vez, falando com lábia, "há sempre um tempo, um batimento". O nosso parece ser esse descompasso, a música atravessando a cena, transbordando.
Te vejo em excessos, em quadros, em igrejas pela cidade. Entre aqui e lá, muito laços, atados. Mais lá ainda que dentro, em mim. Sua presença faz duvidar toda minha geometria e segurança. Tua presença provoca até mesmo meu princípio fundamental de não agressão. Um sem número de vezes me vi avaliando se minhas palavras eram uma expressão genuína de afeto, ou uma lâmina. Dizes não ter expectativa sobre nós, e eu em segredo tento confirmar em mim também algo parecido. Conseguiremos?
Quando a câmera de Bergman se aproxima em close aos rostos dos atores e todo o mundo que os rodeia desaparece: eis a imagem da mais profunda solidão. Lembro da conversa de Ana. A câmera segura e certa naquele todo-mar de olhos azuis rodeado por sardas vermelhas. Os cabelos louros, a boca farta. Me atordoa ouvi-la dizer, como promessa: "E tivemos o maior carinho um pelo outro para sempre". Me atordoa, porque assim como ela, as palavras me parecem banais, não comunicam a experiência, "ainda que seja através delas que eu me defenda" (já diria Bethânia).
Sou um homem dividido, fractal. Me vejo em muitos, refletido, desmontado. Uma parte se aproximou de ti nesse semana. Uma parte. Não sei ser todo, me dói. E meu desafio é ser pedaço em um mundo que exige integridade, completude. Isso não me serve, me esvazia, me força uma cola, um cimento que corrói. Me mata assim como teus olhos através das lentes, tua mão suave, a barba breve, a voz que "viola meus ouvidos". Mas seu teu assassinato cotidiano, os pedaços de mim que pousam sobre ti se esvaem, como um sopro.
Sopra sobre mim tuas palavras, Quero-as, ainda que banais. Tenho esperanças de que algo de ti chegue a mim, ainda que por equívoco. Dizes-me de ti.
Contigo,
T.
P.s.: envio-te junto meu presente pelo teu dias de anos e um pequeno poema do Vinicius. Fica bem. Fica perto.